Não é de Liberdade em abstracto que eu falo, mas, desde logo, da Liberdade de eu próprio realizar um trabalho académico de profundo comprometimento com a transformação da qualidade de ensino no 1º ciclo do Ensino Básico, iniciado há duas décadas (ver blog aqui ao lado: http://geniociencia.blogspot.com/ ). A realidade educativa por mim conhecida no terreno das escolas, uma realidade parada no tempo, (à luz do que tinha sido há 30 anos a minha instrução primária), e, em contraste, a fascinante descoberta dos caminhos de um processo educativo fecundo e transformador, vivido com as crianças, impeliram-me na direcção de um trabalho apaixonado. E aí permaneci, tendo mais tarde compreendido melhor o que se passava comigo, ao ler Karl Popper:
(...) penso que só há uma caminho para a ciência ou para a filosofia, (...): encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe - a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham uma solução. Mas mesmo que obtenham uma solução, poderão então descobrir, para vosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem estar poderão trabalhar com um sentido, até ao fim dos vossos dias. (Popper, 1989: 219).
E os sucessivos resultados dos estudos internacionais em literacia matemática, na língua e em ciências (colocando-nos sempre à volta do 30º lugar, num conjunto de cerca de 40 países), impunham em mim uma demanda maior nesse imperativo de consciência cívica que me impelia para a acção. Sim, porque também é possível as pessoas moverem-se por um princípio ético de compromisso com o interesse geral da comunidade a que pertencem. Todavia, uma surpreendente adversidade, metódica e sistemática, se opunha à realização de projectos e concretização de ideias, umas vezes por baixo da mesa, outras vezes de forma brutal, com graves sequelas para a minha saúde. Vinte anos de resistência a acções persecutórias, sem a qualquer acção institucional, perante dezenas de queixas, participações e apelos, está para além das forças de qualquer ser humano. Comecei então a tentar compreender o que se passava para lá das explicações mais visíveis e imediatas.
Confesso que durante muitos anos recusei a ideia de sermos um povo dotado de uma idiossincracia que nos diminui face aos restantes povos europeus. Recusava essa ideia com a mesma intensidade com que me entregava à realização do meu melhor em prol da educação. Todavia à medida que os anos de vida académica iam passando, essa minha convicção foi-se desvanecendo.
Havia que compreender por que motivo se fechavam as portas a projectos que, na minha boa-fé, tinham como motivação um sério comprometimento com o interesse público, designadamente a educação nos primeros anos de escolaridade?; por que motivo garantias de apoio, falhavam mais adiante, sem explicação?; por que motivo me confrontava com pareceres, uns capciosos, outros fraudulentos?; por que motivo se movem forças destrutivas de cada vez que estou tranquilo com uma trabalho relevante em mãos?; e por que motivo incentivos e apoios entusiásticos expressos, primeiro por escrito e depois no gabinete da 5 de Outubro, ao nível de Ministro da Educação ("rentabilizar este potencial da Universidade do Minho" - expressão utilizada na altura), vêm depois a ser sabotados, mais abaixo na hierarquia ministerial?
A primeira coisa que se tornou claro para mim foi que realizar um trabalho à margem da cultura educacional dominante era "inconveniente" e incómodo. Para entender melhor o fenómeno comecei a interessar-me mais pela História de Portugal e pela Filosofia. Em José Gil vejo que a noção de interesse público, como parte integrante do ser-se cidadão, é coisa escassa entre nós; é por isso que os poderes de pequenas figurinhas avaliam ideias e projectos, não em função do seu alcance social, mas em função de como interferem com o seu estatuto, prestígio e poder. Vejo com uma impressionante nitidez a forma como os poderes mesquinhos conflituam com o interesse geral.
A Inquisição fez de Portugal um Estado religioso policial que perseguia ferozmente qualquer assomo de liberdade, quer do ponto de vista religioso (eventuais simpatias pelo movimento da Reforma Protestante), quer do ponto de vista político - os reis transformou-os a Igreja Católica em déspotas imorais, por via do Concílio de Trento (Antero de Quental).
Nesse caldo de cultura, os que prevaricam estão sempre lavados, branqueados ... Nada se inscreve, como diz o filósofo José Gil; ó isso já foi há muito tempo, costuma dizer-se, e pronto, não se fala mais no assunto. A lei não se aplica e o tempo limpa tudo na memória curta, fenómeno que se impõe pela necessidade de se anestesiar o desconforto moral das consciências. Ao injustiçado aponta-se facilmente o "defeito" de estar agarrado ao passado: que olhe em frente, diz-se. Mas, como olhar em frente se o tão esperado virar de página não acontece nunca, por mais esforços que se façam para arrancar a mágoa das entranhas e por melhor boa-vontade que se demonstre? Enganados ou enganosos conselhos esses! Não, o que a dolorosa experiência ensina é que a impunidade inscreve no futuro a continuação do passado de agressão e de injustiça.
Como os meus já sedimentaos 53 anos de idade, 20 dos quais na carreira académica (no meu percurso profissional há mais mundo para além da Universidade), eu aprendi que um determinado trabalho académico, feito com honestidade e sincera dedicação, pode gerar verdadeiro pavor em certas pessoas. E que esse pavor põe em marcha forças davastadoras inimagináveis, que se movem em surdina, de forma dissimulada, que raramente se mostram às claras. E aprendi que, na Universidade tão repetidamente dita humanista, a vida de um ser humano não vale um pataco furado, aos olhos de certas formas de exercer o poder universitário.
Tudo isto convive na perfeição com a democracia formal das instituições e do país, e com o nosso Estado (dito de) Direito.
Os resultados de tudo isto são a tendência para o servilismo face aos poderes, a ausência de pensamento crítico e de ideias livres, a idolatria de pseudo-intelectuais, o imobilismo que faz do futuro a perpetuação do passado – e tudo isto é afinal o nosso atraso cultural, científico, económico e social. (A este propósito recomendo vivamente a leitura de Antero de Quental, 2008: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, com prefácio de Eduardo Lourenço).
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